
"Espalha-se, pela
sociedade, a ideia de que é com brutalidade que se resolve a vida: desde a
prisão sem fundamento e razoabilidade, a redução da maioridade penal como
remédio e o portar armas como sinônimo de 'paz'", diz o jornalista
Fernando Brito, ao comentar a agressão sofrida pelo ex-ministro Alexandre
Padilha, num restaurante em São Paulo; "agressão estúpida e vaidosa feita
por um executivo palerma – certamente titular de um bom plano de saúde,
devidamente abatido do IR", ressalta Brito
Comecei a escrever este post na terça-feira, mas achei que era
exagerado ficar contando experiências pessoais, mais do que tenho revelado aqui
meus problemas de saúde.
Mas agora, depois da agressão estúpida e vaidosa feita por um
executivo palerma – certamente titular de um bom plano de saúde,
devidamente abatido do IR, isto é, do Estado – contra o ex-ministro
Alexandre Padilha num restaurante paulista, por causa do “Mais Médicos”,
resolvi contar duas histórias. A minha e a de meu velho professor Nilson Lage,
que a publicou em seu Facebook, fonte permanente de pautas e inspiração deste
blog.
Segunda fui fazer exames no Instituto de Cardiologia de
Laranjeiras, vários deles, a começar por uma coleta de sangue, para a qual
cheguei às 7:30 h.
Peguei a senha de número 76 e sentei-me do lado de duas senhoras,
ambas muito longe da condição de miseráveis, uma delas com o número 61 (o da
outra não pude observar). E tome de ouvir que aquilo era uma esculhambação, que
a fila era imensa, etc, etc.
Clientela cerca de 50% de classe média, como eu.
Bom, meu sangue foi colhido às 9h, uma espera que foi menor do que
aquelas que, muitas vezes, tive em laboratórios privados. Depois, esperei mais
meia hora por um eletro e coisa de uma hora ou pouco mais para dois
“doppler”, coronárias, aorta e carótidas”.
Às 13:30 estava fora do do hospital, depois de, em todas as salas
de espera, ouvir impropérios mil contra o “nove dedos”. Assim mesmo, vindo de
gente que não era miserável nem estava sendo exposta a sofrimentos.
Como ouvi no final de semana que passei, quase todo, na Unidade de
Emergência Mário Monteiro, em Piratininga, tomando insulina, subcutânea e no
soro.
Ontem à tarde, de volta a Niterói, fui ao modestíssimo Posto de
Saúde do Tibau, na ligação entre a Lagoa de Piratininga, por onde se chega por
uma ponte que nem suporta caminhões, marcar uma consulta para
encaminhamento a um endocrinologista. Uma ida, como se depreende, sem marcação
nem “peixada”, embora eu tenha visto por ali um simpático e simples restaurante
de peixe, pois o Tibau pouco mais é que uma vila de pescadores. E a consulta
foi marcada para segunda-feira, às sete da manhã.
Claro que há milhares de situações dramáticas e indignas no
atendimento da saúde pública. Muito, muito mesmo, é precário e insuficiente,
mas não há como comparar com o dantesco que não faz muito vivemos.
Mas todos nós, de alguma forma, as aceitamos como panorama
universal da saúde pública, com a cabeça feita pelo mundo-cão com que estes
casos são amplificados pela mídia, com a prazerosa cumplicidade daquela parte
da corporação médica que bem se representa no high-society.
Já em outro lugar “bem”, Florianópolis, Nilson Lage, de 80 anos,
narra:
“Ontem passei mal, com uma gripe braba que
ganhou contornos mais sérios tanto pela idade quanto pelo DPOC – trocando em
miúdos, o antigo e superado (no nome) enfisema; essa doença o rapaz aqui
adquiriu com o vício do cigarro, que era hábito elegante, promovido pelas
estrelas de cinema, objeto ritual de profissões tensas como jornalismo ou
medicina, derivativo ou calmante oferecido até, em caixinhas de dois, aos
passageiros de avião para superar a tensão das “zonas de instabilidade”…
Quado a febre bateu nos 38 e meio e a respiração ficou
insuportavelmente ofegante, às nove da noite de um sábado espremido entre feriados,
fui à Unidade de Pronto Atendimento do bairro. Na UPA, colheram sangue para o
hemograma completo, marcaram o raios-X para o dia seguinte, deram-me oxigênio,
hidrocortisona na veia, antibiótico (indicado excepcionalmente em portadores de
DPOC para prevenir a provável pneumonia bacteriana oportunista) e me puseram em
repouso, ligado aos equipamentos e monitorado por três horas, até que a médica
– uma jovem doutora muito gentil – me liberou com as recomendações de praxe e
indicação para retorno. Tudo conforme o protocolo.
Pelas outras macas passaram um rapaz acidentado que foi porteiro
no condomínio em que moro e uma dona de casa com hérnias de disco que esperava
cirurgia e estava em crise dolorosa;
Deitado, melhorando, tive tempo bastante para
lembrar como era há pouco mais de dez anos quando acontecia algo assim: a
distância, a espera, os ambulatórios de hospitais públicos mais entupidos de
gente do que as rodoviárias; e a medicina-negócio que prosperava no marketing
do desespero oferecendo serviço vagabundo (nunca vi cumprirem integralmente um
protocolo desses, a não ser em clínicas muito caras, e testemunhei outras
tantas vezes o atendimento de casos graves por auxiliares de enfermagem e
estudantes de medicina em início de curso, principalmente nos fins de semana) –
tudo pago, no sufoco, Deus sabe como, por quem podia.
Fico pensando: como se pode odiar, assim, de
graça, alguém que fez esta e outras coisas boas; ou ter saudade do governo
infame e cínico de Fernando Henrique Cardoso, que fazia praça da liquidação dos
serviços públicos, da invasão por vendilhões dos templos onde os homens buscam
seus direitos e adquirem fé na humanidade? Em nome de que ambição, que
ideologia, que princípios que não a lei do mais forte, a crença apaixonada na
guerra de todos contra todos (bellum omnia omnes) descrita no Leviatã, sem
sequer o poder inibidor das maldades humanas previsto por Hobbes?
O poder inibidor das maldades humanas de Hobbes era (ou é) o
Estado e seus aparelhos, ideológicos e repressivos, como a mídia e a Justiça.
Que, no Brasil, tornaram-se estimuladores diários do bellum
omnia omnes, que gerou a famosa frase que afirma ser o homem o
lobo do homem.
Sem um contraponto como, porque a intelectualidade entregou-se às
minudências do politicamente correto, da filosofia do “direito do consumidor” e
do relativismo (paradoxalmente) “absoluto” e de um Governo que não polemiza,
não reage, não proclama princípios e regras, chegamos a este ponto.
Espalha-se, pela sociedade, a ideia de que é com brutalidade que
se resolve a vida: desde a prisão sem fundamento e razoabilidade, a redução da
maioridade penal como remédio e o portar armas como sinônimo de “paz”.
Parece que ingressamos na Era dos Imbecis.
Por Fernando Brito no Tijolaço