sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Por amor


Quando vi o tamanho das filas diante dos caixas, desanimei. Tinha ido ao supermercado para comprar um mísero pacote de café, pretensão insignificante comparada à dos donos dos carrinhos abarrotados à minha frente.

Na dúvida se ia embora ou levava o café, vi que um funcionário se aproximou:

-- Faz tempo que o senhor não aparece.

-- É. Muito trabalho.

Ele hesitou alguns segundos.

-- O senhor não está se lembrando de mim.

Aparentava quarenta e poucos anos, não era alto nem baixo, nem forte nem fraco, tinha o cabelo cortado rente, vestia camisa azul claro e gravata listada, características que não me ajudaram. Olhei discretamente para o crachá, mas a fotografia com o nome estava virada para o lado de dentro.

Ele veio em meu socorro.

-- Sou o gerente. O senhor não me reconheceu porque eu perdi 24 quilos.

Sorriu orgulhoso e virou o crachá para mostrar a foto tirada antes do emagrecimento.

-- Veja como eu era. Meu rosto estava tão inchado,que os olhos pareciam de chinês. O pescoço, em vez de vir do queixo para dentro, fazia uma dobra e se projetava para frente feito papo de galo esganado.

Com um gesto desenhou no ar o volume do pescoço antigo, depois apertou-o e puxou a pele três vezes para mostrar como estava magro agora.

Perguntei se tinha feito cirurgia para reduzir o estômago. Quase ofendido, explicou que havia mudado os hábitos alimentares e comprado uma esteira. Quando eu quis saber de onde viera a motivação para tão difícil empreitada, olhou sério para mim.

-- Do amor.

O amor havia entrado em sua vida pela porta do supermercado. Segundo disse, a moça tinha olhos de mel e um sorriso que iluminava a loja inteira.

-- Ela queria saber em que prateleira estava o leite condensado. Quando me virei para responder, perdi a naturalidade. Ela abaixou o olhar. Amor à primeira vista.

O encontro o surpreendeu num momento de fragilidade, fazia pouco que tinha terminado um casamento de doze anos sem filhos, mas com brigas a perder a conta, provocadas pelos ciúmes que a esposa tinha de todas as mulheres que chegavam num raio de dez metros do marido, incluídas as freguesas da loja de eletrodomésticos na qual ele era vendedor.

-- Chegou a pôr peruca e óculos escuros para me vigiar no trabalho. Era o cão vestido de saia. Por causa de um escândalo que ela armou, fui obrigado a pedir demissão da firma.

A moça do sorriso recusou com delicadeza a ajuda que ele lhe ofereceu na visita seguinte ao supermercado. Na terceira ocasião, cumprimentou-o assim que entrou. Na quarta, trocaram algumas palavras.

Desde então, a imagem dessa mulher passou a fazer parte do cotidiano solitário do gerente. As ações mais triviais do dia a dia eram realizadas como se ela estivesse presente. Ir para o trabalho se tornou fonte de prazer e de ansiedade contínua à espera que ela viesse. Eram cinzentos os dias em que não a via; radiantes quando acontecia o contrário. Começou o regime e comprou a esteira, gordo como estava jamais teria coragem para confessar seus sentimentos.

Quando já tinha perdido dez quilos, o destino colocou os dois na plataforma do metrô. No trem, conversaram com timidez; ela falou do trabalho no escritório de arquitetura, ele dos percalços de gerenciar mais de trinta funcionários. Nenhuma palavra mais íntima.

Daí em diante, os encontros no supermercado se tornaram mais frequentes e menos formais. Chegavam a rir sem motivo das coisas que diziam um para o outro.

Uma noite, ela entrou quando já estavam fechando as portas. Vinte e dois quilos mais magro, ele tirou o crachá e pediu licença para acompanhá-la até a esquina.

No caminho confessou estar apaixonado pela primeira vez na vida, e propôs que se casassem.

-- Meu coração levou uma punhalada. Ela respondeu: que pena, estou de casamento marcado. Não fui capaz de segurar as lágrimas, só consegui dizer que estaria à espera para fazê-la feliz, caso mudasse de ideia.

-- E o que aconteceu?

-- Nunca mais apareceu. Há mais de dois meses. Não sei onde mora nem onde trabalha. Acho que foi embora por medo de fraquejar.

E acrescentou com ar pensativo, acariciando o pescoço:

-- De fato, eu fiquei muito bonito.

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